OS IMPACTOS DA MORTE DE RECÉM-NASCIDOS NA UTI NEONATAL PARA A EQUIPE DE ENFERMAGEM
THE IMPACTS OF THE DEATH OF NEWBORNS IN THE NEONATAL ICU ON THE NURSING TEAM
DOI: 10.24933/rep.v9i1.420
v. 9 n. 1 (2025)
ALMEIDA, Abner Pereira1; SOUZA, Viviani Bertolazzo Gonçalves de2; TEIXEIRA, Vanessa de Oliveira2;
1Docente do Curso de Enfermagem da Universidade São Francisco; 2Enfermeiras pela Universidade São Francisco
abner.pereira@usf.edu.br
RESUMO. Os efeitos desencadeados a partir da morte de recém-nascidos dentro da UTI neonatal podem ser diferentes e únicos em cada profissional de enfermagem que vivencia o óbito. Por essa razão, é importante ter um olhar único para cada profissional atingido e prestar uma assistência personalizada conforme os sentimentos e dificuldades apresentados por cada um. O objetivo geral da pesquisa é avaliar os impactos da morte de recém-nascidos na UTI neonatal para a equipe de enfermagem de um Hospital Universitário localizado no interior do estado de São Paulo. Os objetivos específicos consistem em traçar o perfil dos enfermeiros e técnicos de enfermagem que atuam na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e coletar dados dos profissionais acerca de seus sentimentos e experiências frente à morte neonatal. Trata-se de um estudo quali-quantitativo, descritivo e constitui uma pesquisa de campo. Mediante a pesquisa, foi possível delinear três categorias temáticas que abrangeram os fatores mais impactantes no momento da morte neonatal, os reflexos da falta de suporte psicológico para a equipe de enfermagem e o contraste entre algumas restrições e a assistência humanizada dentro da UTI neonatal. Conclui-se que a morte de pacientes recém-nascidos impacta a enfermagem de diversas formas, e é importante propor estratégias de acolhimento aos profissionais afetados pelas mortes neonatais.
Palavras-chave: enfermagem; unidade de terapia intensiva neonatal; morte.
ABSTRACT. The effects triggered by the death of newborns in the neonatal ICU can be different and unique for each nursing professional who experiences the loss. For this reason, it is important to adopt an individualized approach for each affected professional and provide personalized support according to their emotions and difficulties. The general objective of this research is to assess the impacts of neonatal death in the ICU on the nursing team of a University Hospital located in the interior of the state of São Paulo. The specific objectives include outlining the profile of nurses and nursing technicians working in the Neonatal Intensive Care Unit and collecting data from these professionals regarding their feelings and experiences in the face of neonatal death. This is a qualitative-quantitative, descriptive field study. Through the research, it was possible to identify three thematic categories encompassing the most impactful factors at the moment of neonatal death, the consequences of the lack of psychological support for the nursing team, and the contrast between certain restrictions and humanized care in the neonatal ICU. It is concluded that the death of newborn patients affects nursing professionals in various ways, highlighting the importance of proposing support strategies for those impacted by neonatal deaths.
Keywords: nursing; neonatal intensive care unit; death.
A morte é uma incógnita. Essa realidade torna a questão do morrer complexa, intrincada e, por vezes, angustiante. Apesar disso, a morte é uma etapa natural e inevitável da existência. Mesmo tendo essa compreensão, as pessoas têm dificuldades em lidar com a morte, sobretudo quando ela é, na cronologia e concepção humanas, antecipada. Por essa razão, temáticas como “morte de bebês” e “óbito neonatal” causam desconforto, despertam sentimentos negativos e levam, por vezes, os indivíduos a questionarem o real sentido da vida.
Em sua obra intitulada “A morte é um dia que vale a pena viver” (2019), Ana Cláudia Quintana Arantes ressalta a resistência que existe nos indivíduos, inclusive entre os profissionais da saúde, em conversar sobre a morte. Segundo a autora, o medo, o preconceito e a fragilidade que essa temática carrega são maiores do que a vontade da sociedade de desmistificar esses tabus. Entretanto, considerando que na vida humana todos passarão pela morte, seja como expectadores ou protagonistas, a questão da morte e morrer deveria ser amplamente e abertamente discutida.
Na sociedade, a morte de indivíduos idosos é culturalmente aceita. Por outro lado, a morte infantil e juvenil ocasiona desconforto e profunda tristeza, atingindo desde os familiares até os profissionais que acompanham o processo dessas mortes (MONTEIRO et al., 2020). Apesar dessa ideação sobre a morte, a mesma precisa ser compreendida como um processo integrante da vida, independentemente da faixa etária. Não obstante, a reação que cada indivíduo expressa mediante a dor e o sofrimento é particular. Por conta disso, é importante se atentar aos sentimentos dos profissionais da saúde que lidam com essas perdas (SILVEIRA et al., 2022). O processo de morte dos pacientes afeta, de forma significativa, a vida dos profissionais de enfermagem. É certo que, a forma como cada indivíduo processa o luto mediante suas experiências profissionais e crenças pessoais é um fator diferencial nas diversas formas de enfrentamento (SOUZA; CONCEIÇÃO, 2018).
A literatura aponta a existência de alguns fatores que violam o direito do neonato de morrer dignamente, como associação do cuidado estritamente com a cura da doença, postura de indiferença por parte de alguns profissionais da equipe, sofrimento, luto mal vivido, falta de diálogo da equipe e a falta de conhecimento teórico e prático (CHOLBI et al., 2019). O enfrentamento da equipe de saúde no processo de morte e morrer de crianças em unidade de internação hospitalar leva os profissionais a conduzirem diferentes modos de enfrentamento dessas situações limites (MORAES et al., 2016).
Um estudo analisou as percepções dos profissionais de enfermagem frente à morte de crianças. Os apontamentos foram dificuldades na convivência com o paciente e a família, empatia para com os familiares durante o processo do luto e sensação de impotência diante da morte do paciente pediátrico (SOUZA; CONCEIÇÃO, 2018). Monteiro et al. (2020) destaca a importância de que a morte seja um tema abordado na formação inicial e continuada de todos os profissionais da saúde. Além disso, aponta para a necessidade de que as instituições tenham um olhar diferenciado para seus colaboradores, priorizando sempre a saúde mental desses profissionais que lidam cotidianamente com a morte. Buscando compreender de que forma a morte de recém-nascidos na UTI neonatal impacta a vida dos profissionais de enfermagem, o presente estudo justifica-se por evidenciar a perspectiva da equipe de enfermagem frente à morte neonatal, permitindo pontuar as principais dificuldades apresentadas e traçar meios para auxiliar esses profissionais a lidarem com o luto da melhor maneira que possível for.
Pesquisa de natureza quali-quantitativa, com objetivo descritivo, realizada através do método de pesquisa de campo. O estudo foi executado na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal do Hospital Universitário São Francisco (HUSF), localizado na cidade de Bragança Paulista, no interior de São Paulo.
O levantamento de dados foi realizado com alguns dos profissionais da equipe de Enfermagem que atuam no setor. Para obtenção dos dados foram aplicados os seguintes instrumentos: questionário sociodemográfico-cultural para traçar o perfil dos entrevistados; questionário objetivo contendo 5 questões alternativas; entrevista para coletar relatos de experiências. As respostas obtidas a partir dos questionários sociodemográfico-cultural e objetivo foram representadas através de tabelas, a fim de ilustrar com clareza a proporção dos resultados.
As experiências relatadas durante as entrevistas foram gravadas mediante autorização dos entrevistados e posteriormente foi aplicado o método de Bardin para análise das respostas. Os critérios para inclusão na pesquisa foram (a) atuar como enfermeiro ou técnico de enfermagem na UTI neonatal; (b) consentir em participar da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; (c) não estar de férias ou licença no período da coleta de dados. O critério para exclusão na pesquisa foi não preencher os critérios para inclusão. O estudo foi inserido na plataforma Brasil para aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco, sendo aprovado pelo CAAE: 70102423.5.0000.5514.
Participaram do estudo duas enfermeiras e quinze técnicas de enfermagem. Após aplicação de questionário sociodemográfico-cultural, foi possível a elaboração da Tabela 1 para a caracterização da amostra.
Tabela 1 – Caracterização da amostra. |
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Variável |
Número |
Porcentagem |
Idade |
|
|
24-34 anos |
8 |
47,06% |
35-44 anos |
5 |
29,42% |
45-55 anos |
4 |
23,52% |
|
|
|
Sexo |
|
|
Feminino |
17 |
100% |
Masculino |
0 |
0% |
|
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|
Escolaridade |
|
|
Ensino técnico completo |
8 |
47,06% |
Ensino Superior incompleto |
3 |
17,64% |
Ensino superior completo |
6 |
35,30% |
|
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|
Tempo de Trabalho na unidade |
|
|
< 1ano |
3 |
17,64% |
1-5 anos |
4 |
23,52% |
5-10 anos |
3 |
17,64% |
> 10 anos |
7 |
41,20% |
Cont. Tabela 1 |
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Religião |
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Católica |
10 |
58,84% |
Evangélica |
4 |
23,52% |
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Kardecista |
1 |
5,88% |
Testemunha de Jeová |
1 |
5,88% |
Umbandista |
1 |
5,88% |
Fonte: Próprio autor |
Observa-se que toda a amostra é composta por mulheres, o que reflete o estereótipo de gênero que é percebido na profissão. Segundo levantamento do Conselho Federal de Enfermagem, mulheres compõem uma porcentagem de aproximadamente 85% da categoria no país (COFEN, 2020). Para Magalhães (2021), o estereótipo da enfermagem influencia na escolha profissional, diminuindo a presença masculina na profissão. Como, historicamente, o cuidado tem relação estreita com as mulheres, essas características acabam tendo maior relevância do que todo o conhecimento técnico e teórico no momento da escolha profissional.
Com relação a faixa etária, nota-se que a maior parte das profissionais são jovens, com idades entre 24 e 34 anos. Entretanto, é possível perceber um contraste na variável “tempo de trabalho na unidade”, tendo em vista que quase metade das profissionais atuam no setor há mais de 10 anos e são, consequentemente, mais velhas. Com isso, observa-se que apesar de os jovens ocuparem predominantemente o espaço de trabalho, há também uma prevalência dos profissionais mais antigos.
Concernente ao grau de instrução, infere-se que 35,30% das profissionais possuem ensino superior completo, porcentagem que corresponde a um total de 6 profissionais. Apesar disso, apenas duas entre essas 6 profissionais exercem o bacharelado, o que corresponde a apenas 11,76%, enquanto 15 profissionais atuam a nível técnico, simbolizando 88,24%. Esses dados podem ser um indicativo de que há mais oportunidades de trabalho nas profissões de grau técnico do que no grau superior, visto que apesar de um número expressivo de profissionais possuírem título de bacharel, a maioria exerce profissão de competência técnica.
Na variável “religião”, observa-se a predominância do catolicismo. Segundo o último censo realizado pelo IBGE, a religião mais prevalente no Brasil é, de fato, a Católica Apostólica Romana, com cerca de 123.000.000 de adeptos (IBGE, 2010). Apesar do número expressivo de católicos, nota-se diversidade de religiões no setor, o que agrega culturas e experiências ao ambiente de trabalho.
Mediante respostas obtidas através do questionário objetivo contendo 5 questões alternativas, foi possível elaborar a Tabela 2. Observa-se que o sentimento mais prevalente nos profissionais de enfermagem frente às mortes neonatais é a tristeza, seguida da sensação de impotência. Ademais, um número considerável de profissionais afirmou carregar consigo esses sentimentos, levando-os para o seu ambiente familiar. Considerando que quase 80% da amostra declarou sentir falta de apoio psicológico no ambiente de trabalho, evidencia-se a necessidade de suprir essa demanda.
Nota-se que um número considerável de profissionais sente, mediante as vivências, tornar-se cada vez mais fácil lidar com a morte neonatal. Monteiro, Mendes e Beck (2020) relacionam essa facilidade a uma estratégia de defesa que os profissionais utilizam para se proteger do sofrimento. Segundo Miorin et al. (2016), investir em afeto e criar laços torna-se um fator de sofrimento. Portanto, é necessário utilizar estratégias de defesa para lidar com a carga psíquica, sendo uma destas distanciar o afeto do trabalho, focando-se nas atividades técnicas.
Tabela 2 – Respostas ao questionário objetivo. |
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Questões |
Alternativas |
Número |
Porcentagem |
Q01 - Você sente falta de suporte psicológico no seu ambiente de trabalho frente às experiências de morte neonatal? |
Sim |
13 |
76,47% |
Não |
4 |
23,53% |
|
|
|
|
|
Q02 - Você leva consigo os sentimentos gerados pela morte neonatal do seu ambiente de trabalho para o seu ambiente familiar? |
Sim |
13 |
76,47% |
Não |
4 |
23,53% |
|
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|
Q03 - A cada experiência de morte neonatal, você sente que fica mais fácil ou mais difícil lidar com essa situação? |
Cada vez mais fácil |
8 |
47,06% |
Cada vez mais difícil |
6 |
35,29% |
|
Varia conforme a situação |
3 |
17,65% |
|
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Q04 - Dos sentimentos listados abaixo, qual deles é predominante para você no momento da morte de um neonato que estava aos seus cuidados? |
Tristeza |
12 |
70,58% |
Frustração |
0 |
0% |
|
Impotência |
5 |
29,42% |
|
Culpa |
0 |
0% |
|
Incapacidade |
0 |
0% |
|
Negação |
0 |
0% |
|
Inconformação |
0 |
0% |
|
Indiferença |
0 |
0% |
|
|
|
|
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Q05 - Você utiliza a religião como um meio de buscar conforto frente às perdas neonatais ocorridas em seu trabalho? |
Sim |
17 |
100% |
Não |
0 |
0% |
|
Fonte: Próprio autor |
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Observa-se que 100% da amostra alegou utilizar a religião, seja ela qual for, como meio de conforto frente às perdas neonatais. Para Ferreira, Salimena e Melo (2013), a crença em algo superior facilita a vivência do luto tornando-o mais tênue, entretanto, sem inviabilizar a austeridade do processo da morte.
Após a transcrição dos dados e filtragem dos elementos textuais pertinentes ao tema de estudo, foi possível o delineamento de três categorias temáticas: O que mais dói; A ausência que pesa; Remorso e regulamentação: A proibição de carregar recém-nascidos no colo enquanto vivos.
O que mais dói
O sofrimento da família diante da morte neonatal é um fator de impacto na equipe de enfermagem que lida com essa situação sensível. Os profissionais de enfermagem tornam-se intermediários cruciais entre os pais enlutados e a perda de um bebê. Entretanto, a dor do enfermeiro/técnico de enfermagem mediante o sofrimento da família é, muitas vezes, mais significativa do que o sentimento que o profissional carrega a respeito da própria morte do RN.
É mais fácil aceitar a morte do paciente do que o sofrimento familiar [...] A gente uma vez perdeu uma criança aqui, a mãe não conseguiu chegar a tempo, a gente teve que levar ela lá na geladeira [...] então, você ver uma mãe lá gritando com o filho no braço, gelado... é muito triste, isso marca muito a gente... (Violeta).
O pior momento para mim na hora do óbito, é a hora que a família chega. Eu não tenho medo de nada, de preparar, de levar o corpo para a sala, mas a hora que a família chega... aí arrebenta (Margarida).
Além disso, um estudo evidenciou que a experiência de ser mãe para as enfermeiras as torna mais solidárias no ambiente de trabalho, pois os sentimentos são intensificados mediante o sofrimento da família. A vivência de ser mãe altera a forma como as profissionais enxergam as mães da UTIN e intensifica a empatia dessas enfermeiras/técnicas de enfermagem no contexto do cuidado (MUFATO; GAIVA, 2020).
No meu plantão, todas são mães e acho que a partir do momento que você se torna mãe, o cuidado que você tem com as crianças [...] muda, com certeza! A gente quer tratar como se fosse nosso... quando eu engravidei, eu falei “nossa, será que vou conseguir voltar a trabalhar na neo?” (Orquídea).
No dia do óbito dele aqui, a mãe ficou uma hora ali com o corpinho, e eu tento fugir, sabe? Acho que por ter um filho também, eu tento sumir da cena (Margarida).
O que eu sinto mais é pelos pais... no caso, pelas mães, porque como eu já perdi um filho, me traz lembranças e é o momento que eu não consigo falar nada para os pais [...] mas geralmente aquele choro, aquela dor que a mãe sente, eu praticamente sinto junto, porque eu sei como que é (Jasmin).
Além dos fatores “sofrimento familiar” e “profissionais que são mães”, identificamos que a morte de uma criança maior impacta a equipe de enfermagem de forma mais intensa do que a morte de um recém-nascido devido à ligação emocional e ao maior tempo de convivência com a criança e sua família.
Quando é a morte de um prematuro a gente sente bastante [...] só que aí tem um conforto para nós, porque esse bebê ainda não foi para casa, ele ainda não teve uma história dentro da família. Quando a criança é maior, já esteve na residência... é muito mais difícil... fico até arrepiada de falar [...] porque ele já tem uma história, fotos com a família... toda a lembrança é muito difícil... não que o prematuro não seja difícil, mas é diferente, acho que dói mais (Orquídea).
Todas as mortes a gente fica com dó, mas quando a criancinha é maior, eu acho que mexe mais do que os RN, porque já teve contato com os pais, já foi para a casa, é diferente [...] eu falo que eu sofro por todos, mas os maiorzinhos acaba sendo mais sofrido (Azaleia).
É que o neo, na verdade, sai dali e não vai para os seus pais. Agora, quando vai é outra história... é muito pior, assim, 80% pior (Hortênsia).
Segundo Medeiros et al. (2022), é compreensível que o processo de morte e morrer possa apresentar especificidades conforme a fase do desenvolvimento infantil e que, consequentemente, as repercussões para os familiares e profissionais tenham também suas peculiaridades.
Diante do exposto, constata-se que, no momento do óbito neonatal, há fatores mais relevantes para a equipe de enfermagem do que a morte do paciente de fato.
A ausência que pesa
Lidar com a morte de bebês é uma experiência extremamente desafiadora e emocionalmente desgastante. Nesse contexto, a ausência de suporte psicológico para a equipe de enfermagem em uma UTI neonatal pode ter graves reflexos emocionais. Durante o estudo, notou-se na fala das entrevistadas que um reflexo marcante da falta de apoio psicológico para a equipe é o fato de levar consigo para o ambiente familiar os sentimentos gerados dentro do ambiente de trabalho.
O começo pra gente aqui é difícil, principalmente porque a gente nunca teve acompanhamento psicológico aqui [...] Então, no mesmo plantão eu perdi duas crianças, e eu não tive apoio psicológico profissionalmente falando aqui, e nesse dia eu fiquei muito abatida... na minha casa, o meu namorado falou “hoje você não está legal”, não estava mesmo! [...] essa falta de apoio psicológico pra gente, ela pesa muito... ela pesa muito (Violeta).
Querendo ou não, a gente acaba levando para as nossas casas [...] O plantão segue, tem que seguir, né?! A gente continua com o sorriso no rosto, mas por dentro a gente fica destruída, e é sempre no momento que a gente chega em casa que vem tudo à tona [...] Quando a gente toma o nosso banho, descansa um pouco, a gente pensa “meu Deus, eu tenho um emprego, eu pago as minhas contas graças ao meu emprego que eu amo, mas, assim, eu bato meu ponto e eu venho embora. E essas mãezinhas?” (Rosa).
O contato cotidiano com a morte dos pacientes não exime os profissionais de sentimentos angustiantes. No entanto, dessas angústias deve emergir uma ressignificação do conceito de morte e da própria vida do profissional. Apesar disso, suportes são indispensáveis para a criação dos meios de ressignificação do sofrimento. Do contrário, impotência e tristeza são desencadeadas a partir da perda de controle sobre a vida (BASTOS; QUINTANA; CARNEVALE, 2018).
Remorso e Regulamentação: A proibição de carregar os recém-nascidos no colo enquanto vivos
A restrição de se colocar recém-nascidos no colo em uma unidade de terapia intensiva neonatal é considerada uma medida de segurança. Em contrapartida, o contato pele a pele entre mãe e bebê é uma prática altamente recomendada para promover o bem-estar e o desenvolvimento saudável do recém-nascido. Nesse contexto, surge, então, um dilema: Permitir que pais carreguem seus filhos no colo no cenário de uma UTI neonatal é benéfico ou negligente?
O Manual Técnico de Atenção Humanizada ao Recém-Nascido referente ao método canguru considera essa metodologia um importante serviço de saúde pública para a neonatologia (BRASIL, 2017). Por definição, o método canguru é uma forma de assistência neonatal baseada no contato pele a pele precoce e progressivo entre mãe, pai e recém-nascido (BRASIL, 2003). Um estudo apontou algumas potencialidades deste método, entre as quais estão formação de vínculo entre pais e bebê, inserção da família no processo do cuidar, diminuição do estresse e da dor no recém-nascido e possibilidade de uma assistência humanizada (FERREIRA et al., 2019). Apesar das evidências, esse mesmo estudo infere que há uma resistência por parte da equipe de enfermagem quanto a essa abordagem.
Nos relatos das entrevistas, essa resistência foi validada nos seguintes trechos:
Acho que a pior parte é a hora que a mãe chega, né, porque aqui muitas pessoas são contra colocar no colo [...] hoje mesmo eu pedi pra uma mãe segurar o bebê com as duas mãos dentro da incubadora enquanto eu trocava o ninho, e ninguém viu o que eu fiz, mas não sei quando ela vai conseguir pegar essa criança no colo, gente! (Margarida).
Enquanto está vivo, dificilmente consegue carregar o bebê no colo. A gente até sente falta disso aqui, as mães acabam não pegando no colo vivo e depois só pegam quando está morto (Tulipa).
No entanto, apesar das políticas regulamentadoras que regem o ambiente de terapia intensiva neonatal, algumas falas evidenciaram um certo pesar por parte da equipe de enfermagem no que se refere à proibição de os pais carregarem seus filhos no colo.
Quando tem um óbito, a parte que mais me dói é saber, é sentir, é perceber, é enxergar o quanto essa mãe quis pegar esse bebezinho no colo [...] até me arrepia, é de quebrar as pernas porque é muito triste você entregar um corpinho sem vida pra uma mãe cheia de amor... (Rosa).
Eu tive que levar um bebê já em óbito no colo da mãe, e eu não me esqueço daquele bebê... Pra mim, foi uma das situações mais marcantes aqui na neo (Camélia).
De acordo com Pinheiro e Carr (2019), a prática do método canguru também fortalece a assistência humanizada, pois os profissionais tornam-se, mediante a eficácia da abordagem, mais sensíveis aos cuidados com os recém-nascidos. O simples fato de permitir que pais carreguem seus filhos recém-nascidos no colo é capaz de estreitar o laço entre familiares e profissionais. Ferreira e colaboradores (2019) afirma que o método canguru promove aproximação entre família e equipe, o que consolida as ações de enfermagem no cuidado e ocasiona assistência mais assertiva. Destaca-se, em algumas falas dos entrevistados, o quanto a permissão para o contato entre pais e recém-nascidos gera sentimentos de gratidão e reconhecimento nesses pais para com a equipe.
A mãe me abraçou, me beijou, agradeceu e quase ajoelhou no meu pé por eu ter colocado o filho dela vivo no colo e não ser só a experiência de pegar morto [...] acho que isso impacta a gente (Margarida).
Quando eu ofereço pra uma mãe a possibilidade de ela trocar uma fralda, parece que ela ganhou um presente. Aquele dia se torna rico pelo toque, pelo contato, pelo cuidado (Rosa).
Esse reconhecimento é gratificante para os profissionais, e tem a capacidade de motivá-los a realizar assistências cada vez mais humanizadas. Portanto, evidencia-se a importância e os impactos da permissão de contato dentro da UTI neonatal.
Os resultados deste estudo evidenciaram que, no momento da morte neonatal, há fatores de maior impacto para a equipe de enfermagem do que a própria morte do paciente. Lidar com o sofrimento dos familiares enlutados mostrou-se ser um fator potencial para desestabilizar os profissionais da equipe. O estudo também identificou que a morte de crianças em contraste com a morte de recém-nascidos, afeta mais os profissionais, pois eles consideram que, uma vez que a criança foi para casa e já vivenciou uma história, deixou lembranças e criou laços dentro da família, o sofrimento ao ver essa criança partir é mais intenso do que o sofrimento pela morte de um recém-nascido que nunca deixou o hospital para conviver em ambiente familiar. Além disso, evidenciou-se que profissionais que atuam na UTIN e são mães tornam-se mais sensíveis e empáticas ao cenário das mortes neonatais.
O estudo também trouxe à tona os reflexos da falta de apoio psicológico aos profissionais que atuam na UTI neonatal e lidam com mortes prematuras cotidianamente. Entre eles, o fato de que os profissionais carregam consigo os sentimentos gerados dentro do ambiente de trabalho para o seu ambiente familiar, e a prevalência dos sentimentos de tristeza e impotência alertam para a importância de a instituição munir-se de estratégias a fim de garantir suporte psicológico aos colaboradores, prezando pelo bem-estar mental desses indivíduos e, consequentemente, garantindo assistência de excelência aos pacientes.
Constatou-se, ainda, a importância das religiões no contexto de conforto e superação para os indivíduos. O estudo mostrou que a crença em algo maior, independente da fé singular de cada um, é um fator contribuinte para a ressignificação do sofrimento mediante as mortes dentro da UTI neonatal.
No mais, o estudo demonstrou a relevância da aplicação do método canguru para amenização do sofrimento e ansiedade causados aos familiares e profissionais dentro do contexto da UTIN. Em contrapartida, constatou-se que a maior parte dos profissionais, mesmo tendo ciência dos benefícios do contato pele a pele entre mãe e bebê, resistem a essa prática por questões regulamentadoras. Isso evidencia que, nesse contexto, as normas podem sobressair à humanização na assistência de enfermagem.
Espera-se que os achados deste estudo contribuam com a classe da enfermagem, e que cuidar de quem cuida torne-se, um dia, aspecto primordial para as instituições de saúde.
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Recebido em: 11/02/2025
Publicado em: 29/04/2025